O que resta para nós?

O que resta para nós os comuns?
Sem grandes feitos ou lápides garantidas, sem lágrimas caídas no olho de alguém, esquecidos na semana seguinte e desaparecidos no tempo.

O que resta para nós, coadjuvantes da vida?
Sem carimbos ou mesmo passaporte, sem lances de azar ou sorte, sem grandes feitos ou tragédias para contar em um suposto livro de memórias.

O que resta para nós, os sem talento?
Sem elogios de faces conhecidas, redimidas por prêmios ou referenciadas por grandes descobertas que mudam a vida da humanidade. Sem estátuas para colocar na estante, fotos relevantes de alguém que renda os olhos arregalados.

O que resta para nós, carimbadores de contas de consumo?
Passamos, como papel molhado que escorre pela sarjeta de uma rua que ninguém conheceu e que não se tornou digna de turismo em qualquer cidade turística, onde até os cães são atrativos para essa gente.

Nada, absolutamente nada resta a quem não tem o que ganhar ou perder, aos que se empoleiram e se sacodem apenas para acordar depois de amanhã. Eu, você, a maioria de nós não deixa pegadas, ossadas, porque iguais a nós há tantos e tantos outros a esperar o tempo passar, enquanto a dor, o álcool e o câncer decompõem a nossa alma.

O que temos para hoje no menu é o que temos todos os dias. O mesmo gosto, a mesma textura, a mesma tristeza sem fundura e largura.

Se serve de consolo, já é tarde demais.

Dois olhos no Carnaval

Eu levei meus olhos tristes para ver o Carnaval
cansados de fitar o mesmo rosto sobre o vidro do fogão

Mas como sempre atrasado, disseram-me que a festa já havia acabado e como as cinzas de uma quarta-feira eu permaneci sob a tempestade

As plantas crescem como nunca, as vidas se vão como sempre
torrenciais como as suas palavras cravadas na ponta de uma faca sem ponta
a refletir a água no chão que invade e traz de volta o que eu pensei ter escorrido pelo ralo

Minhas duas mãos esquerdas escrevem promessas de mentira no papel toalha
minhas duas línguas mortas revelam as melhores dores que alguém pode sentir

Há furos e queimaduras no braço
de alguém guardado por dois vira-latas e coberto por pilhas de jornais

No frenético som do silencio dos alto-falantes já muito longe da avenida
eu, o último folião, me apego ao esguicho de água de uma flor
para esquecer que hoje já é meio período em uma tristeza em tempo integral

Sempre no tom errado, desafinado em dó menor, muito menor
pareço ouvir você dizer que nada é pior
do que alguém vestido de palhaço, mas que não sabe chorar

Você me entrega uma arma, você me traz um cadáver
você banha minhas mãos de sangue e me faz sentir um assassino sem vozes na cabeça ou sem uma lógica em série para explicar o crime

Minha fantasia não faz sentido para ninguém que retomou o azedume dos dias
minha palavras não são capazes de se agrupar em uma única frase capaz de dobrar o rumo do vento
minha liberdade são como duas algemas abertas nos pulsos
à espera do torturador especialista em pontos finais.

Água de quartinha

Um pouco de água da quartinha, um pouco das minhas águas na rua. Só Esù sabe quem eu sou. Sem luz e sem piedade, vossa majestade caminha entre vísceras e peitos abertos indisposto para julgamentos.

Sem paciência para definições, aquele que tem fome de histórias narra a breve passagem de cada homem e mulher que não marcaram a história.

Anónimos como eu, vestidos de preto numa sexta. Insolentes e angelicalmente trajados de branco em uma segunda quando o comércio abre as portas para qualquer tipo de gente. Escravos e escravizadores, desde que não escarrem no chão ou não chutem o cachorro caramelo. Para quem afoga mágoas e dores, incompreendidos e incapazes de compreender a vida.

O dono do ogó e de qualquer caminho que queira deseja ouro e sangue, temperado com o dendê pegando fogo. Ergue o alguidar e joga tudo fora. Porque sim. “Não é meu?”, pergunta entre gargalhadas, com aqueles lábios saborosos e irónicos, com os dentes de cima reluzentes em companhia do completo vazio da gengiva na parte inferior de uma boca tão desejada.

A mim não pediu nada.

Apenas que escrevesse essa história. “Aqui é tudo mentira”, sussurrou ao pé da orelha do gato, que de tão pasmo até parecia uma galinha hipnotizada sobre as telhas. Depois queimei a folha, como mandou, porque Esù não é de pedir.

O último ato dessa ópera burlesca termina com as cinzas no ar, que navegam ao encontro da fumaça de cigarros encerrando o expediente enquanto a neblina desce. Para começar tudo de novo.

Um pouco de água da quartinha, um pouco das minhas lágrimas. Ao velho comandante de navios fantasmas. Só Esù sabe quantos pedaços eu tenho recolhido nos últimos tempos, quantos retalhos tenho costurado para compor a minha fantasia. Mas e daí? Sorria, você está em boa companhia. Porque nenhuma companhia é ruim, se puder pagar a conta.

Ando (mas não queria)

Ando falando aos que não ouvem

Ando mostrando fotos da minha alma aos que não enxergam

Ando cansado de tanto andar

Ando exausto de verdades indestrutíveis, de respostas para todas as perguntas, de tantas perguntas que nunca terão resposta. Ando cansado de terra árida. Porque terra árida não dá frutos.

Ando interessado em calar a boca, crispar os lábios e esperar o mundo se acabar aos pedaços numa noite de lua minguante

Ando desconfiado de campos de batalhas que não são minhas, feridas que não me ferem, botas pesadas e duras que não calçam meus pés

Ando

mas tenho vontade mesmo é de rastejar

até o bueiro mais prôximo

na esperança de me transformar em Alligator no esgoto e depois ser morto para virar uma linda bolsa de couro

Para andar o mundo todo e só prestar contas à alfândega.

Apenas um pombo

Quando eu era um filhote, ainda mais frágil, no ninho, antes mesmo de romper o primeiro pedaço da casca do ovo onde passei um tempo, eu imaginava que quando ficasse mais velho a vida seria mais fácil porque eu saberia responder todas as perguntas.

Todos os voos que eu tivesse feito, todos os lugares onde eu fui buscar comida, todos os representantes da maldita raça humana dos quais me esquivei eu imaginei que fariam com que eu fosse mais forte, mais esperto e mais feliz.

Quando eu era pequeno, eu imaginei que um dia encontraria um deus para cultuar, de grandes asas flamejantes, bico de aço, pernas fortes que meteria medo em todos os predadores. O primeiro de nossa espécie que nos encheria de orgulho e isso me inspiraria a me sentir forte e menos solitário.

Eu era apenas um mísero recém-nascido que dependia da minha mãe para me alimentar quando sonhava com voos altos sobre grandes prédios. Algumas boas cagadas que ninguém identificaria. Seria incapaz de ser alcançado, abatido, nem mesmo observado por quem quer que fosse.

O tempo passou e eu me tornei o que sempre temi. Eu virei um pombo. Amigo de velhos em praças, parceiro de outros pombos. A arrulhar como todos os outros para minha implacável decepção.

Enquanto movimento meu pescoço para frente e para trás, sem esperança ou expectativas, pergunto a mim mesmo: seria eu um pombo com TDH incapaz de lembrar de minhas buscas por comida? Teria eu confundido e comido barbante ao invés de minhoca?

Pois qual outra explicação haveria para esse labirinto de nós que reside em um peito expandido? Eu, bicho tão medíocre a refletir sobre a vida ao invés de viver todos os espetaculares seis anos da minha existência.

Apenas um pombo. Era tudo que eu temia.

Qualquer coisa além de nada

Caminhando entre carniças, encontrei um lindo girassol que me garantiu, tudo irá ficar pior. O último sonho foi engolido numa caçamba e os pneus dos últimos carros queimados ainda ardiam quando desceram morro abaixo em direção à casa construída com restos de papelão. Lamentei pelo tempo de um suspiro, porque o ar pesado de algum metal, disse o rádio, é contraindicado aos pulmões que ainda se expandem e contraem.

Nas manhãs de segunda ninguém acredita mais em minhas histórias e não os culpo. Eu também não acredito. São horas perdidas, tempo perdido em uma avalanche de boas intenções. O sol se põe e se vai há séculos e nós ainda procuramos novidades no mundo. Nascemos e morremos exatamente da mesma maneira e sofremos pela mesma razão desde que o primeiro de nós balbuciou alguma palavra e nos ensinou aquilo que viria a ser a dor.

Deus abençoa, Deus pragueja. Enquanto procuramos uma versão acolhedora que ao menos nos permita viver. O que você quer que eu diga? O que quer eu escreva? Sou capaz de oferecer minha alma em uma bandeja pela paz de um mundo à espera da próxima bomba atômica. Seus dentes cravados em minha perna buscam alguma reação, mas, desculpe, querida, hoje eu sou incapaz de oferecer qualquer coisa além de nada.

Odair, o amaldiçoado

Com a pele cortada por lençóis de seda e alimentado por um banquete invejável duas vezes ao dia, Odair desfrutava de uma paz que jamais almejou. Perdido dentro do próprio labirinto, esfregava as mãos sobre a cabeça em busca de alguma manifestação inexplicável que desse qualquer sinal de vida dentro da vida.

Há 30 anos passando os dias sentado na beira da cama, com barba feita e cabelos escovados pelo incansável Paulo Roberto, Odair era vítima de uma maldição pronunciada por uma velha feiticeira que murmurou míseras três palavras num acostamento da Régis Bittencourt: você irá viver.

Um homem sem coração

“Não se martirize, Natália, sei que fez com a melhor das intenções. Foi um ato de caridade, seja lá o que isso signifique. E a escolha foi perfeita. Eu mesmo não faria melhor. Aliás, faria a mesma coisa que você, tem toda lógica. São mais de 25 anos à frente do Império das Carnes, no principado do Mandaqui, decepando peles e ossos, fatiando até aquilo sobre o qual ele provavelmente não tinha a menor ideia da procedência. Eu também escolheria o Everaldo para essa operação”, dizia eu, tentando acalmar a mulher em prantos, com as lágrimas concorrendo com o rio de sangue que escorria daquele órgão.

O problema foi a curiosidade, isso foi o que nos trouxe a esse terrível impasse.

Bastava Everaldo, profissional experiente, como já descrito nas linhas anteriores, ter cravado a lâmina afiada e soltado o cabo branco, depois banhado de vermelho. Tudo estaria resolvido.

Mas, por alguma razão, que nem ele conseguia explicar – e certamente a gagueira não ajudava –, resolveu ir além. Queria ver como era. Já conhecia o de boi, o de galinha e até o de cachorro. Mas como seria o de um homem?

Afastou os ossos, cortou artérias, vasos e limpou precisamente. Desatarraxou do meu peito com a facilidade de quem retira uma resistência do chuveiro. E por algum feitiço, maldição ou sabe-se lá o que, eu continuei vivo.

Mas realizado, como nós dois gostaríamos, Natália.

Enfim, transformara-me num homem puramente racional. Sem ataques de raiva, sem cenas dramáticas de amor. Sem telefonemas na madrugada ou gérberas na sua porta por razão qualquer. Nem os cigarros, nem as traições, nem mesmo as rendas penduradas na porta seriam capazes de provocar qualquer reação imprevista no meu corpo de medidas agora milimetricamente calculadas.

Poderia, enfim, ser honesto na minha desonestidade, sem qualquer traço de culpa ou de subssentimentos.

O problema é que naquele momento, olhando para aquilo pulsando, eu, Natália e Everaldo éramos tomados por uma súbita reflexão, terrivelmente inadequada para a ocasião.

Sem os erros do meu coração, o que traria, afinal, razão à minha existência?

Nove linhas verticais

Ser velho é um tapa na cara de São Paulo, a cidade que carrega o altruísmo da redenção numa mão e a tortura legítima na outra. É um contrassenso com o tempo, é atrasar a chegada de quem não consegue dormir quando vem a noite e mal pode levantar quando o dia nasce. De quem não está vivo, nem morto, muito pelo contrário.

Meus pés nas nove faixas brancas verticais é minha hora de ser protagonista e poder decidir sobre o ritmo da cidade que eu ajudei a construir para que vocês a destruíssem. Se eu não me mover, você também não poderá andar com seu carro movido a ansiedade e remédios. Meu ritmo é o seu ritmo, meu desejo é o seu desejo e minha vitória é quando eu coloco meu pé no outro lado da calçada demonstrando que você não é dono dessa rua.

Por isso, aquelas nove linhas brancas verticais sempre são minha perversidade diária, o meu encontro com meus demônios, minha tragédia abraçada à minha comédia. Você quer me matar atrás do seu volante, mas seu desejo de ser melhor do que verdadeiramente é lhe faz balançar rápido seus dedos dizendo para eu passar. Seguida por seu arrependimento pelos minutos que escorrem a conta gotas sem que faça qualquer diferença para mim, a verdade da ampulheta.

Mas tudo isso só funciona em faixas sem semáforo para pedestres, amigos velhos.

Ladeiras

Paula me levou para ver os animais no zoológico
comprou um saco de pipocas doces e um sorvete de duas cores
riu dos macacos em fúria
assobiou para o leão dopado
eu apenas consegui sentir pena de tudo isso

Andréia me convidou para ir ao cinema
comprou óculos que mudavam o foco
reservou poltronas que se mexiam
e quando olhou nos meus olhos para saber o que senti
eu tive de admitir que não entendi nada

Bianca disse que tinha uma surpresa
levou-me a uma feira de flores
apontou para a diversidade de cores
pegou algumas rosas comestíveis e salpicou pétalas em minha língua
apertou bem minha mãos e arrancou um ‘legal’ de meus lábios

Nancy me levou a um encontro em seu grupo de submissos
retirou da sacola prata um chicote com fitas na ponta
achou que talvez eu conseguisse sentir medo
ou talvez não fosse imune à dor
mas toda aquela gente imobilizada me transmitia o mesmo desespero e melancolia que vejo em qualquer estação de metrô

Renata me deu conselhos profundos, seu colo e sua casa
um vela numa mão, frases inspiradoras na outra
durante algum tempo funcionou
mas ninguém deixa de ser o que realmente nasceu para ser
e eis-me aqui de volta à velha acidez temperada com meu sorriso econômico e minhas palavras arquivadas

Perdão por todas as tentativas frutadas
Perdão por toda a esperança consumida