Água de quartinha

Um pouco de água da quartinha, um pouco das minhas águas na rua. Só Esù sabe quem eu sou. Sem luz e sem piedade, vossa majestade caminha entre vísceras e peitos abertos indisposto para julgamentos.

Sem paciência para definições, aquele que tem fome de histórias narra a breve passagem de cada homem e mulher que não marcaram a história.

Anónimos como eu, vestidos de preto numa sexta. Insolentes e angelicalmente trajados de branco em uma segunda quando o comércio abre as portas para qualquer tipo de gente. Escravos e escravizadores, desde que não escarrem no chão ou não chutem o cachorro caramelo. Para quem afoga mágoas e dores, incompreendidos e incapazes de compreender a vida.

O dono do ogó e de qualquer caminho que queira deseja ouro e sangue, temperado com o dendê pegando fogo. Ergue o alguidar e joga tudo fora. Porque sim. “Não é meu?”, pergunta entre gargalhadas, com aqueles lábios saborosos e irónicos, com os dentes de cima reluzentes em companhia do completo vazio da gengiva na parte inferior de uma boca tão desejada.

A mim não pediu nada.

Apenas que escrevesse essa história. “Aqui é tudo mentira”, sussurrou ao pé da orelha do gato, que de tão pasmo até parecia uma galinha hipnotizada sobre as telhas. Depois queimei a folha, como mandou, porque Esù não é de pedir.

O último ato dessa ópera burlesca termina com as cinzas no ar, que navegam ao encontro da fumaça de cigarros encerrando o expediente enquanto a neblina desce. Para começar tudo de novo.

Um pouco de água da quartinha, um pouco das minhas lágrimas. Ao velho comandante de navios fantasmas. Só Esù sabe quantos pedaços eu tenho recolhido nos últimos tempos, quantos retalhos tenho costurado para compor a minha fantasia. Mas e daí? Sorria, você está em boa companhia. Porque nenhuma companhia é ruim, se puder pagar a conta.

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