Um homem sem coração

“Não se martirize, Natália, sei que fez com a melhor das intenções. Foi um ato de caridade, seja lá o que isso signifique. E a escolha foi perfeita. Eu mesmo não faria melhor. Aliás, faria a mesma coisa que você, tem toda lógica. São mais de 25 anos à frente do Império das Carnes, no principado do Mandaqui, decepando peles e ossos, fatiando até aquilo sobre o qual ele provavelmente não tinha a menor ideia da procedência. Eu também escolheria o Everaldo para essa operação”, dizia eu, tentando acalmar a mulher em prantos, com as lágrimas concorrendo com o rio de sangue que escorria daquele órgão.

O problema foi a curiosidade, isso foi o que nos trouxe a esse terrível impasse.

Bastava Everaldo, profissional experiente, como já descrito nas linhas anteriores, ter cravado a lâmina afiada e soltado o cabo branco, depois banhado de vermelho. Tudo estaria resolvido.

Mas, por alguma razão, que nem ele conseguia explicar – e certamente a gagueira não ajudava –, resolveu ir além. Queria ver como era. Já conhecia o de boi, o de galinha e até o de cachorro. Mas como seria o de um homem?

Afastou os ossos, cortou artérias, vasos e limpou precisamente. Desatarraxou do meu peito com a facilidade de quem retira uma resistência do chuveiro. E por algum feitiço, maldição ou sabe-se lá o que, eu continuei vivo.

Mas realizado, como nós dois gostaríamos, Natália.

Enfim, transformara-me num homem puramente racional. Sem ataques de raiva, sem cenas dramáticas de amor. Sem telefonemas na madrugada ou gérberas na sua porta por razão qualquer. Nem os cigarros, nem as traições, nem mesmo as rendas penduradas na porta seriam capazes de provocar qualquer reação imprevista no meu corpo de medidas agora milimetricamente calculadas.

Poderia, enfim, ser honesto na minha desonestidade, sem qualquer traço de culpa ou de subssentimentos.

O problema é que naquele momento, olhando para aquilo pulsando, eu, Natália e Everaldo éramos tomados por uma súbita reflexão, terrivelmente inadequada para a ocasião.

Sem os erros do meu coração, o que traria, afinal, razão à minha existência?

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